terça-feira, 12 de abril de 2016

"O desentendimento" - "Democracia ou consenso" (no Brasil)

Um pouco de Jacques Rancière, em sua obra "O desentendimento", para o momento no Brasil:

Democracia ou consenso


"A esse estado idílico do político dá-se geralmente o nome de democracia consensual. Tentaremos mostrar aqui que esse conceito é, com todo o rigor, a conjunção de termos contraditórios. Proporemos portanto, para reflterir sobre esse objeto mais singular do que parece, o nome de pós-democracia. A justificativa desse nome passa somente pela explicitação de alguns paradoxos inerentes ao discurso atualmente dominante sobre democracia.

De um lado, ouvimos por toda parte proclamar o triunfo da democracia, correlativo do desabamento dos chamados sistemas totalitários. Esse triunfo seria duplo. Seria, primeiro, uma vitória da democracia, entendida como regime político, sistema das instituições que materializam a soberania popular, sobre seu adversário, a prova de que esse regime é ao mesmo tempo o mais justo e o mais eficaz. A falência dos chamados Estados totalitários é de fato uma falência em relação ao que era sua legitimação última: o argumento de eficiência, a capacidade do sistema para fornecer as condições materiais de uma comunidade nova. Resulta daí uma legitimação reforçada do chamado regime democrático: a ideia de que ele garante num mesmo movimento as formas políticas da justiça e as formas econômicas de produção da riqueza, de composição dos juros e de otimização dos ganhos para todos. Mas é, também, ao que parece, uma vitória da democracia, como prática do político a seus próprios olhos. A sombra de uma dúvida persistente da democracia sobre si mesma sempre pairou sobre a história do movimento democrático ocidental. Esta se resumiu na oposição marxista da democracia formal e da democracia real, oposição meta-política muitas vezes interiorizada na própria condução do litígio político. A democracia nunca deixou de estar sob suspeita até aos olhos dos próprios democratas. Aqueles que lutavam com mais vigor pelos direitos democráticos eram muitas vezes os primeiros a suspeitar que esses direitos eram apenas muito formais, não eram mais que a sombra da verdadeira democracia. Ora, a falência do sistema totalitário parece levantar finalmente a hipoteca de uma democracia "real" que alimentava a suspeita sobre a democracia. Parece, portanto, possível valorizar sem reservas as formas da democracia, entendidas como os dispositivos institucionais da soberania do povo, identificar simplesmente democracia e Estado de direito, Estado de direito e liberalismo e reconhecer na democracia a figura ideal de uma realização da physis do homem que empreende e deseja enquanto nomos comunitário. 
Esse sucesso da democracia se atribui com frequência à retirada de uma segunda hipoteca, aquela colocada pela ideia de povo. A democracia hoje renunciaria a colocar-se como o poder do povo. Ela abandonaria a dupla figura do povo que pesou sobre a política na era das revoluções modernas: a identificação rousseauniana do povo ao sujeito da soberania, e a identificação marxista - e mais amplamente socialista - ao trabalhador como figura social empírica e ao proletário ou produtor como figura de uma superação da política em sua verdade. Diz-se que esse povo superdeterminado obstava o verdadeiro contrato político, aquele pelo qual os indivíduos e os grupos concordam acerca das formas jurídico-políticas capazes de garantir a coexistência de todos e a participação ótima de cada um nos bens da coletividade.
Tal é, grosso modo, o esquema de legitimação da democracia que funciona como balanço da catástrofe totalitária. Ora, esse esquema esbarra num paradoxo. Normalmente, a ruína dos "mitos" do povo e da democracia "real" deveria levar à reabilitação da democracia "formal", ao reforço da adesão aos dispositivos institucionais da soberania do povo e principalmente às formas do controle parlamentar.  Ora, não é de modo nenhum o que acontece. No sistema político francês, por exemplo, observa-se uma degradação contínua da representação parlamentar, a extensão dos poderes políticos de instâncias não-responsáveis (peritos, juízes, comissões), o crescimento do campo reservado ao presidente e de uma concepção carismática da figura presidencial. O paradoxo é o seguinte: na época em que as instituições da representação parlamentar eram contestadas, em que prevalecia a ideia de que elas eram "apenas formas", eram no entanto objeto de uma vigilância militante em superior. E vimos gerações de militantes socialistas e comunistas lutarem ferozmente por uma Constituição, direitos, instituições e funcionamentos institucionais dos quais diziam, por outro lado, que exprimiam o poder da burguesia e do capital. Hoje, a situação se acha invertida e a vitória da chamada democracia formal vem acompanhada por uma sensível perda de afeição por suas formas. Segundo ele, a sabedoria democrática não seria tanto a atenção escrupulosa a instituições que garantem o poder do povo por meio de instituições representativas, mas a adequação das formas de exercício político ao modo de ser de uma sociedade, às forças que a movem, às necessidades, interesses e desejos entrecruzados que a tecem. Seria a adequação aos cálculos de otimização que se operam e se entrecruzam no corpo social, aos processos de individualização e a solidariedades que eles mesmos impõem.
(...) O sucesso da democracia consistiria então que ela ache, nas nossas sociedades, uma coincidência entre sua forma política e seu ser sensível."

[Rancière, Jacques. (1995/1996) O desentendimento - política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34. pgs. 99-101.]